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» BIA é a minha mulher!

A história ocorreu numa das sessões de alfabetização promovidas por Paulo Freire, numa qualquer localidade brasileira e parece que se passou da seguinte forma:

Um senhor, já com uma idade avançada, participava, com mais uns quantos colegas da mesma faixa etária, numa sessão de alfabetização. A sessão decorria normalmente, quando, de repente, aquele velho homem, se levantou repentinamente da sua cadeira e, com dois ou três enormes passos, se dirigiu ao quadro e aí parou.

Todos se calaram e olhavam para o homem. Este estava imóvel fitando o quadro, apenas se vislumbrando o movimento descoordenado dos seus olhos procurando, juntando arrumando as letras e as sílabas que se encontravam, aleatoriamente, escritas a giz branco na superfície negra de uma provável ardósia. A sua respiração tornava-se, a cada momento, mais intensa e profunda; na sua pele nasciam pequenas gotas de suor;  aqui e ali, sentia-se que aquela criatura estava em grande ansiedade.

Todos mantinham o silêncio e olhavam para o homem que parecia estar hipnotizado, olhando incessantemente para o quadro. O que se passaria dentro daquela pessoa? O que procuraria ele com o seu olhar ziguezagueante? O que o fazia transpirar? O que lhe provocara a alteração de todo o seu metabolismo?

De repente, o homem balbuciou qualquer coisa. Ninguém, no entanto, percebeu o estranho barulho que as suas cordas vocais arrancavam ao seu mais profundo pensamento. Mas, o homem continuou a tentar dizer qualquer coisa.

B…B…B…BI…BI….BIA…BIA. BIA! BIA! BIA!

Às tantas, após a repetição, vezes sem conta, da expressão BIA, o responsável da sessão de alfabetização atreveu-se a perguntar ao homem o que se havia passado e porque razão ele tinha esbarrado naquela expressão BIA, que não parava de repetir.

O Homem interrompeu a sequência de BIA que vinha repetindo, levou as mãos ao bolso para tirar um lenço com o qual limpou o suor, olhou em redor, tomou consciência que estava no centro das atenções, sorriu levemente e disse:

- BIA é a minha mulher! Eu nunca a tinha visto assim: escrita com aquelas palavras todas. Minha querida BIA…Como é bonita a minha BIA assim escrita. Que beleza…

Parece que, após este desabafo, o homem fez o ar mais feliz do mundo e correu para sua casa no sentido de dizer à sua mulher a grande novidade: aprendera a ler o seu nome: BIA

A história terá sido mais ou menos assim. Pelo menos, foi assim que a escutei. E dela nunca mais me esqueci, pelo simbolismo que a mesma representa e pela mensagem que me transmitiu. Na realidade, neste Dia Internacional da Literacia, em que, certamente, muitos falarão das dimensões em que hoje se pensa e se discute este conceito (Literacia Económica, Literacia Cultural, Literacia Tecnológica ou Digital, Literacia do Consumidor, Literacia Visual, Literacia Política, Literacia da Informação…), convém que não nos esqueçamos da Literacia mais essencial que existe: a que resulta do facto de muitos dos nossos concidadãos não conseguirem, simplesmente, ler este texto.

Na realidade, quando nos confrontamos com a realidade portuguesa, os últimos dados estatísticos revelam-nos que a taxa de analfabetismo era de 9.1% (cerca de 838.000 portugueses), aquando do último recenseamento geral da população portuguesa (2001). No Alentejo, na mesma altura, a mesma taxa era de 17% (cerca de 84.000 alentejanos).

Como facilmente poderemos constatar, é muita gente! Muitas mulheres e muitos homens que não exerceram ainda o seu Direito à Educação, na sua expressão mais formal e elementar: aprender a ler e a escrever.

Se o conceito de analfabetismo que utilizarmos compreender também aqueles que, tendo aprendido a ler e a escrever, entretanto perderam, em parte ou na totalidade, essa capacidade, então os números serão muito maiores.

Neste Dia Internacional da Literacia convém que reflictamos acerca desta realidade que está ainda bem presente nas nossas famílias, no nosso círculo de amigos, no nosso bairro, na nossa freguesia, nas nossas terras, no nosso Alentejo.

O Direito à Educação não pode depender da idade, do género, do local de residência, da condição social e económica ou de qualquer outro factor.

Mas convém que não nos fiquemos pelos pensamentos e por aquelas palavras de conforto que sempre existem quando nos demitimos de mudar a realidade. O analfabetismo tem um remédio simples e barato: Aprender. Aprender a ler, a escrever, a calcular, a pensar, a ter consciência da realidade, a decidir, a participar, a ser autónomo, a ser livre. No limite, aprender a ler, escrever, calcular, participar e decidir promove a Liberdade, a Autonomia e a Felicidade. Foi sempre esse o ideal de Paulo Freire e é esse o ideal de todos os(as) professores(as).

Todos – cidadãos, autarcas, responsáveis institucionais, escolas públicas e privadas, professores(as), estudantes, voluntários(as) – temos a capacidade de mudar esta realidade e de fazer nascer, no rosto de muitos dos nossos concidadãos, aquela Felicidade que o nosso amigo brasileiro irradiou, quando soletrou a palavra mais importante da vida dele: BIA. Foi, para ele, um momento que valeu uma vida inteira. Há muitos concidadãos nossos ainda à espera desse momento. A sua concretização também depende de nós, os que conseguimos ler estas palavras até aqui.

Paulo Freire (1921-1997) Destacou-se por seu trabalho na área da educação popular, voltada tanto para a escolarização como para a formação da consciência. É considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, tendo influenciado o movimento chamado pedagogia crítica (http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Freire)

analfabeto é um “indivíduo com 10 ou mais anos que não sabe ler nem escrever, isto é, o indivíduo incapaz de ler e compreender uma frase escrita ou de escrever uma frase completa”. INE (Instituto Nacional de Estatística, 2003).

23/08/2008

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